Muitos atores idosos reclamam que, por causa da idade, os bons papéis ficam escassos. Ary Fontoura vai na contramão. Aos 80 anos, o ator é um dos destaques de "Amor à Vida", interpretando Lutero. O médico sensato e extremamente ético caiu nas graças do público, mas também surpreendeu recentemente uma parcela ao dizer abertamente no horário nobre a palavra "piranha". Isso seria impensável na TV há alguns anos. "Nosso linguajar passou por uma modificação enorme", defende ele. "Temos que estar de acordo com as mudanças ao nosso redor".
Em entrevista ao Purepeople, Ary comenta essa repercussão, avalia sua parceria profissional com Walcyr Carrasco ("Amor à Vida" é sua sexta novela com o autor) e conta com lida com a idade. Em tempos de "vipinho" e "vipão", após o vazamento da divisão de categoria das celebridades convidadas para um camarote no Rock in Rio, Ary dá uma lição a muitos colegas de profissão. "Esse negócio de muito VIP te priva de participar do todo. Gosto de ficar no meio do povo. É muito mais animado".
Purepeople: Qual é a sua avaliação do sucesso do doutor Lutero?
Ary Fontoura: Ele é uma exceção no Hospital San Magno. Um sujeito ético e sem concessões, que deixa de lado as coisas que poderiam favorecê-lo. Em um mundo com tanta corrupção e pessoas que não pensam de modo coletivo, alguém como o Lutero chama a atenção. Os telespectadores se questionam se ainda há pessoas assim no mundo.
Purepeople: O fato do Lutero se referir à Aline (Vanessa Giácomo) como "piranha" gera muitos comentários nas redes sociais. Essa palavra não era dita abertamente na TV há alguns anos. O que o senhor acha que mudou?
AF: Nosso linguajar passou por uma modificação enorme. Nas redes sociais, por exemplo, há uma série de códigos que, se as pessoas não estiverem por dentro, não vão entender determinadas mensagens. Essa liberdade também aparece no modo de falar. Hoje em dia, quando você fala 'caralho' não está se referindo ao pênis. É quase como uma expressão.
Purepeople: O senhor é a favor desse tipo de mudança nas novelas?
AF: Sem dúvida. O linguajar hoje é mais direto e objetivo. Temos que estar de acordo com as mudanças ao nosso redor e a novela é um trabalho que atinge o grande público. Ele ouve isso sem fazer qualquer distinção porque faz parte do seu cotidiano.
Purepeople: Por que acha, então, que chocou uma parte do público?
AF: Isso é hipocrisia, algo que tanto norteia a atitude das pessoas. É um tipo de defesa, de se acomodar da melhor maneira. As pessoas gostam de adular e meter o pau.
Purepeople: E o senhor não ficou surpreso ao ver a palavra no roteiro?
AF: Dificilmente me espanto com as coisas. Eu, como intérprete, sabendo que teria que falar essa palavra, dei um toque especial. Fiz com certa moderação, mas não fugi do que já estava pincelado.
Purepeople: O Walcyr Carrasco já declarou em entrevistas que não gosta de intervenções de atores nos diálogos escritos por ele. Como lida com isso?
AF: Honramos aquilo que o autor escreveu, mas o ator não é um mero repetidor. O autor acredita no ator a quem direcionou o papel e esse intérprete faz modificações que às vezes ficam melhores de se dizer. Determinadas palavras e frases ficam muito melhores na boca do personagem do que como estão escritas. Por isso há substituições de palavras, advérbios, substantivos, adjetivos.
Purepeople: E cacos (gíria usada para se referir à criação de uma fala inexistente pelo ator)?
AF: Essa inserção me parece que é uma impropriedade neste momento. Alguns atores usam mais no sentido humorístico, para atualizar determinadas piadas. Mas em um diálogo tradicional, sério e inteligente não acredito que haja muito.
Purepeople: Como avalia sua parceria com o Walcyr Carrasco? Das nove novelas dele na TV Globo, "Amor à Vida" é a sua sexta.
AF: É muito conveniente para um autor conhecer o intérprete para quem ele vai escrever. Como é tão conveniente para o ator entender o autor para quem ele representa. Essas parcerias podem tranquilamente acontecer em benefício da obra. Acho que o Walcyr aproveita o meu talento e eu aproveito o que ele escreve.
Purepeople: Alguns atores idosos reclamam da escassez de bons papéis por causa da idade. Aos 80 anos, o senhor é destaque no horário nobre. Se considera privilegiado?
AF: Eu me considero um justiçado. Acredito que meu talento merece bons papéis.
Purepeople: A idade é algo que te preocupa?
AF: Eu brinco com ela. Brinco também com minha vida. Uma vez vi um musical na Broadway em que a protagonista dizia que a vida é um banquete, mas que a maioria morre de fome. Aquilo ficou na minha cabeça e pensei: não vou participar desse banquete sem comer à beça. Aproveito tudo o que é possível.
Purepeople: Sua ida ao último Rock in Rio chamou a atenção do público, por exemplo.
AF: Eu só fui lá porque realmente queria ir. Não faço nada que não gosto. Adoro música. Também gosto de cinema, de jantar, de amigos, festas, de conversar. Meus assessores costumam dizer que falo demais, mas sou assim mesmo (risos).
Purepeople: Qual show gostou mais no festival?
AF: O da Florence (And The Machine, banda britânica de indie rock). Também gostei muito da apresentação do Bruce Springsteen. Um homem de 64 anos com aquela jovialidade. Valeu à pena ter assistido.
Purepeople: Mas o dia do Bruce não foi o dia que o senhor foi fotografado na área VIP...
AF: Nesse dia eu não fui lá. Fiquei embaixo, no meio do povo. É mais animado! Esse negócio de muito VIP te priva de participar do todo. Por exemplo, adoro ir a jogos de futebol e gosto de ficar na arquibancada. Enquanto o jogo não começa, todo mundo brinca comigo. Quando os jogadores entram no gramado, todo mundo me esquece. E eu também me esqueço. Me divirto muito.
Purepeople: O senhor torce para qual time?
AF: Para nenhum. Vou ao estádio pelo espetáculo do futebol. É muito bom assistir a uma partida. Sobretudo de uma arquibancada. Você tem uma visão mais ampla. Ah, é uma beleza!
(Por Anderson Dezan)