Quem esperava de "Velho Chico" apenas mais uma novela rural, cheia de paisagens e linda fotografia, se surpreendeu com o primeiro capítulo, exibido nesta segunda-feira (14). Em vez de ser uma espécie de resgate das tramas famíliares, a direção de Luiz Fernando Carvalho, com sua linguagem estética lúdica, causou impacto pela ousadia, no melhor sentido. A estreia foi marcada pela roupagem moderna dada à dramaturgia tradicionalista de Benedito Ruy Barbosa. Despida de pudores (literalmente) desde os enquadramentos até os corpos de Carol Castro e Rodrigo Santoro, a emoção se fez presente do início ao fim.
A ambientação rural é uma marca forte da obra de Benedito Ruy Barbosa, e o sucesso que a reprise de "O Rei do Gado" no Vale a Pena Ver de Novo fez em 2015 foi um indicativo de que o público estava com saudade. "Velho Chico", então, que a princípio seria exibida às seis foi remanejada para as nove, horário em que tramas urbanas como "Babilônia" e a própria "A Regra do Jogo" receberam críticas por vários fatores, dentre eles casais gays e muita violência. Contudo, no meio da calma e tranquilidade das fazendas à beira do rio São Francisco tinha a Tropicália acontecendo na capital. Tinha uma Tropicália no meio do caminho.
É inegavel que o embate entre o Coronel Saruê (Tarcício Meira), poderoso e explorador do povo, e Capitão Rosa (Rodrigo Lombardi), o idealista que está do lado do povo, deram o tom do capítulo, com cenas de tensão e interpretações muito inspiradas de Tarcísio e Rodrigo. Fabiula Nascimento (Eulália) e Selma Egrei (Encarnação), duas grandes e talensosas atrizes, só fizeram melhorar o que já estava bom. Mas se não fosse pela loucura apaixonada de Afrânio (Rodrigo Santoro) e Iolanda (Carol Castro) nascenas inseridas alternadamente entre a "realidade" de Grotas, quase como um sonho, provavelmente não haveria o arrebatamento que a trama provocou.
O interessante do trabalho da direção, que já acontecia em "Meu Pedacinho de Chão", é justamente esse jogo de vai e vem, que provoca várias sensações. A linguagem desta novela se aproxima bem mais do cinema e do que se vê nas minisséries do que da que gente está acostumado a ver no horário nobre, em que as experimentações são menos permitidas por serem mais arriscadas.
Trilha sonora e cenas de nu são destaques da estreia
Além destes, outro acerto bem acertado, com o perdão da redundância, é a trilha sonora. Um primor. Seja cantada pelos personagens, instrumental ou clássicos da MPB e do forró, as canções são lindas e vão sendo bem aproveitadas em cena. A história começa sendo contada (e cantada) por repentistas, ao som de um instrumental da música Oração de São Francisco, mas de repente vira um embate em clima de faroeste, com trilha que beira o desenho animado e armas em punho.
Mas aí, sem preparação nem aviso, acontece o corte para a festa de jovens, vivendo momentos intensos de paixão e de loucura, cantando de cabelo molhado e com suor no rosto, aos beijos, seminus, num mundo que só deve ter noção do que foi quem viveu a Tropicália. Essa dinâmica é o que tira o telespectador da cadeira e faz saltar o coração, que pula de um ritmo para o outro, descompassado.
Quando você vê, eles estão sem roupa, e aparece um seio aqui, um bumbum ali... Ôpa, quase nu frontal. Pode isso na hora da novela, gente? Ah, pode, sim. É uma obra de arte, é licença poética, são tempos modernos. São Edmara Barbosa e Bruno Luperi dando continuidade ao ofício do pai e avô, respectivamente, com uma cara nova e corajosa. E a despeito do discurso polêmico que o próprio Benedito fez na coletiva.
Essa estreia merce palmas por arriscar ser ousada. E para Luis Fernando Carvalho e sua impressionante equipe - principalmente de cenografia e figurino - todas as reverências. Tomara que a qualidade e os acertos deste primeiro capítulo sejam matidos até o último. E até lá, ainda tem muita água do Velho Chico para passar debaixo da ponte.
(Por Samyta Nunes)